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Os Internacionais

Parte da população do Sul do Brasil já não se identifica como brasileira. Movimentos separatistas e apropriação de identidades europeias ganham espaço

Há duas coisas que o ser humano nasce sem poder escolher: seu nome e sua nacionalidade. O nome é escolhido por outras pessoas, para que nenhum indivíduo cresça sem ter algo pelo qual ser chamado. O nome é parte da identidade de um ser humano. A nacionalidade compõe essa identidade, e também é algo sem o que não é possível existir.

A nacionalidade constitui também a identidade de um povo. Por exemplo, as pessoas nascidas no Brasil formam o povo brasileiro. De acordo com o dicionário Priberam, “povo” é o conjunto de habitantes de uma nação - pessoas que compartilham a mesma nacionalidade.

O Brasil é o quinto maior país do mundo. É composto por 26 estados e dividido em cinco regiões: Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul, sendo o Sul formado pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Essa região apresenta uma característica que a diferencia das demais regiões: há uma grande concentração de pessoas que não se consideram parte da nação brasileira. Esses são “Os Internacionais”.

Os Internacionais são pessoas nascidas no sul do Brasil, portanto, brasileiros, que não se identificam como tal. Esses sulistas consideram ter opções de nacionalidade além da brasileira.

“Europeus, mas nascidos no Brasil”

Quando a jornalista Jana Teixeira se mudou para Dois Irmãos, no Rio Grande do Sul, não imaginou que a mudança seria mais que apenas de estado. A cidade, que fica a 60 km de Porto Alegre, é conhecida como Vale Germânico e foi colonizada, assim como inúmeras outras cidades da região, por alemães. A cultura alemã é protagonista ali.

Mas a questão é mais profunda que isso. Na cidade de 30 mil habitantes, a maior parte da população não se considera brasileira.

De acordo com o doutor em história Marcio Both, a construção da identidade de um povo ou grupo social se deve a fatores culturais, étnicos, históricos, sociais, econômicos e conjunturais. Apesar disso, ele explica que as identidades sociais não são estáticas e que os processos de construção identitária são relacionais. “A existência de um ‘eu’ está intimamente interconectada à existência de um ‘outro’, ou de ‘outros’, que se relacionam de diferentes modos com esse ‘eu’”.

No município de Dois Irmãos, levando em conta todos esses fatores, a população se identifica com a nacionalidade alemã, mesmo tendo nascido no Brasil.

Por lei, é possível deixar de ser brasileiro, basta adquirir outra nacionalidade, Há, porém, duas exceções para esse processo: quando a lei estrangeira reconhece outra nacionalidade (como brasileiros com cidadania alemã ou pessoas, filhas de pais brasileiros, que tenham nascido fora do país) ou quando há a imposição da nacionalidade em outro país como condição de permanência ou de exercício de direitos civis. Nesses casos, os brasileiros podem ter dupla cidadania. Tirando as duas situações, portanto, para não ser considerado brasileiro, é preciso ter outra nacionalidade.

Na prática, essa questão legal é deixada de lado. É muito comum encontrar pessoas na Região Sul que se consideram alemãs, italianas, polonesas etc., simplesmente pelo fato de terem um grau de descendência de alguém dessas nacionalidades ou, ainda, por conta do processo de colonização: como os estados foram colonizados por europeus, essas pessoas acreditam ser parte desse povo colonizador.

Foi no ano de 2018 que Jana se mudou para Dois Irmãos. Apesar de conhecer a região anteriormente, devido a passeios em períodos de férias, a adaptação não foi fácil como parecia. Ela saiu de uma cidade com 400 mil habitantes para morar em um município com 35 mil habitantes, onde tudo é muito diferente. “Minha questão de adaptação teve uma questão minha, que foi imaginar que seria lindo e maravilhoso, cheguei aqui e não foi”, relata.

Na região, que tem costumes germânicos, foi difícil para Jana fazer amigos. Ela conta que chegou lá com receios. “Eu estava com medo, em questão de preconceito, por eu ser negra e estar numa região onde o forte são os alemães, e, querendo ou não, tem aquela questão de que o Sul tem um preconceito”, expõe. “As pessoas percebem logo no teu sotaque e já falam ‘você não é daqui’”.

“Logo que cheguei, uma vizinha me viu na rua e veio me cumprimentar, falando ‘que legal que você está morando aqui. Fiquei muito feliz quando soube, porque você é uma brasileira, como eu. Não é como os alemães’. Eu fiquei meio assim… Brasileira?”.

Essa não foi a única ocasião em que Jana foi considerada parte de um povo diferente - o brasileiro. Certa vez, em um almoço com a família de seu marido, Jana ouviu a seguinte frase da tia dele: “Ah, eu não tenho nada contra quem é brasileiro”.

Quando perguntou para sua sogra sobre o assunto, o esclarecimento veio de uma forma um pouco chocante para a jornalista. “Ela disse que tem muitas pessoas que consideram como brasileiro quem é negro, e eu fiquei pensando ‘como assim? Para mim todo mundo que tá aqui é brasileiro, por enquanto não conheci ninguém que nasceu na Alemanha’”. 

“Entre origens e heranças”

A Região Sul do Brasil foi povoada por imigrantes europeus, principalmente italianos, poloneses e alemães. Mas, além desses povos, o Sul tem heranças japonesas, ucranianas e, é claro, de seus povos originários: os indígenas. Esses povos influenciaram no sotaque, na arquitetura e até mesmo na culinária, e esses fatores são levados muito a sério mesmo hoje, centenas de anos após a colonização.

No estado de Santa Catarina, alguns municípios possuem uma lei que obriga a construção de casas em estilo europeu (enxaimel). Há até uma cidade onde a população, formada por imigrantes e descendentes austríacos, preserva a linguagem, os costumes, festas e comidas típicas do país de origem.

Esse apego aos costumes dos colonizadores é muito comum na região sul. No Rio Grande do Sul, Jana vive rodeada por costumes dos colonizadores alemães. “Todo mundo é alemão pelo sobrenome, e eles são muito tradicionalistas e têm muito orgulho das tradições deles. Do chimarrão, do sotaque, do churrasco, e tentam manter bastante as tradições”.

Mas, para além da valorização dos próprios costumes, há a ideia de que todos os valorizam da mesma forma. “Uma coisa que eu acho curiosa é que tem muitas pessoas que acham que as coisas que acontecem aqui no Rio Grande do Sul acontecem em outros estados. Tem gente que acha que o dia 20 de setembro [Dia do Gaúcho] é comemorado até no Paraná”, conta Jana.

O professor Marcio Both explica. “Quando falamos de nossas heranças alemãs e italianas, o que é muito comum em algumas regiões aqui do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, devemos ter em conta que a Alemanha e a Itália só passaram a existir como nações unificadas a partir da década de 1880 e que parte significativa dos imigrantes alemães e italianos que aportaram em terras brasileiras no século 19 identificavam-se mais com as suas regiões de origem do que como alemães ou italianos propriamente ditos”.

O historiador pontua que a discussão é complexa. “Neste mesmo sentido, também devemos ter em mente que as identidades alemãs e italianas constituídas nas regiões de colonização são hifenizadas, isto é, aqui no Brasil lidamos com teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros, não com alemães e italianos propriamente ditos. Outro fator importante desse processo é que estas identidades hifenizadas foram resultado de longos processos históricos de construção e que carregam dentro de si muito conflito, muitas conquistas, mas também muitas decepções e problemas”, destaca.

“Eu amo meu país, o Sul”

No dia 9 de abril de 1992, na cidade de Laguna, em Santa Catarina, um movimento surgia. Na terra natal de Anita Garibaldi, a Heroína de Dois Mundos, nasceu um movimento com um objetivo bastante específico: separar os estados do Sul do restante do Brasil.

O Sul É O Meu País começava sua trajetória.

Um dos fundadores, Celso Deucher, conta que o movimento foi pensado levando em conta questões que, de acordo com os fundadores, o Brasil não consegue resolver com o Sul, estando entre elas os aspectos político, econômico, tributário, cultural e social. “Essas questões nos motivaram a ponto de nos levar, então, a criar uma instituição legalmente constituída para defender a proposta de que o Sul seja ouvido sobre as possibilidades pacíficas e democráticas de constituir um país independente”, explica.

O Sul É O Meu País é considerado, por suas características, um movimento separatista, ou seja, um movimento formado por um grupo de pessoas que buscam a independência, a separação, do Estado ao qual pertencem. Para Celso, não é bem assim. “[O Sul É O Meu País] não é um movimento separatista de fato: ele luta pelo direito de as pessoas se expressarem pelo coletivo humano. Por quê? Porque o cidadão comum já tem esse direito de pensar, de se expressar e de se organizar com quem pensa igual a ele para divulgar sua ideia. Mas tem no papel, porque na prática isso não existe”.

“O papel do movimento é lutar para que o Sul seja ouvido”

A advogada Joselice Bautitz define o movimento como inconstitucional. “A nossa Carta Magna, promulgada no ano de 1988, determinou, já no Art. 1º do referido diploma legal, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ou seja, como os estados do Sul pertencem à República, esta dissolução afronta, já num primeiro momento, o Art. 1º que instituiu a nossa federação”.

Celso justifica que o movimento baseia suas ações no princípio da autodeterminação dos povos. Este princípio dá aos povos o direito de autogoverno e de decidirem sua situação política, e aos Estados o direito de defender sua existência e condição independente. Apesar disso, a autodeterminação dos povos possui caráter democrático, e só pode ser reivindicada caso haja concordância entre o grupo, a qual pode ser confirmada com um plebiscito.

O Movimento O Sul É O Meu País realizou dois plebiscitos informais - sem validade legal - em 2016 e 2017. De acordo com o site do movimento, o primeiro PLEBISUL contou com a participação de 616.917 pessoas. Em 2017, foram 364.256 participantes. Entre as pessoas que participaram destas votações, o Movimento obteve 96% de aprovação.

À época da última votação, a expectativa era de, ao menos, 1 milhão de votos. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a região sul possui 21.781.949 cidadãos aptos a votar. Ou seja, 1 milhão de votantes esperados no PLEBISUL de 2017 representaria cerca de 4,6% da população votante do sul. O número de participantes que de fato participaram do PLEBISUL representa aproximadamente 1,7% dessa população.

Celso Deucher relata que, hoje, o maior número de apoiadores do Movimento está em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, mas que no Paraná há cerca de 140 municípios onde o Movimento tem representação. Ao todo, ele aponta 960 municípios onde O Sul É O Meu País é representado, havendo cerca de 40 mil pessoas em sua estrutura organizativa e, segundo ele, mais de 25 milhões de apoiadores.

O Movimento defende o parlamentarismo como forma de governo, com um rodízio entre os três estados. Além disso, a moeda vigente seria o Pila, homenageando figuras históricas em suas cédulas, como Guairacá, Bento Gonçalves e Anita Garibaldi.

Nos documentos oficiais do movimento, consta que o nome do país, caso ocorra a separação, será União Sul-Brasileira. A capital desse país? Lages, em Santa Catarina.

O co-fundador do movimento revela que, nos próximos cinco anos, seu planejamento estratégico inclui uma discussão dentro dos parlamentos, além da realização de um Plebiscito consultivo realizado sob a auditoria de organizações internacionais. “Queremos provar legalmente que temos esta vontade de nos tornarmos um país independente. Além disso, planejamos chegar a 100% dos municípios Sulistas. Estamos em cerca de 960 dos mais de 1100 municípios do Sul”.

Para ele, o que diferencia a população sulista da brasileira é a questão de ser um povo que, “desde 1500, caminha sozinho neste território”. “Fomos perseguidos ao longo dos séculos e em muitos momentos inclusive fomos à guerra para defender o que pensamos”.

Ele cita a história para ilustrar seu argumento: a República Del Guayrá, Os Sete Povos das Missões, a República Rio Grandense, a República Catarinense, a Revolução Federalista, a República de Lorena e a Guerra do Contestado. “Tais eventos nos legaram uma personalidade própria que resultou na criação da Nação Sulista em nossa consciência e no nosso coração. Não somos brasileiros, somos Sul-Brasileiros. Não temos nada contra os demais brasileiros, mas queremos ter nosso próprio país, pois é um direito que temos como coletividade de poder construir nosso futuro de acordo com aquilo em que acreditamos e no que queremos”, declara.

Nos 29 anos defendendo esse movimento, Celso já levou 49 processos, em sua maioria tendo como verdugo o Estado Brasileiro. “Ganhei todos com base na liberdade que tenho para pensar e expressar o que penso. O mais engraçado disto é que cerca de 20 processos vieram de setores da esquerda e da direita brasileira que defendem o estado máximo e que o estado brasileiro teria o direito de repreender aqueles que ousam pensar livremente. Com tantos inimigos nestes dois espectros ideológicos, penso que estou no caminho certo e tenho cada dia mais força para lutar pelo que acredito”.

A advogada Joselice fundamenta: “Não há nenhum impedimento legal para que o movimento possa ser defendido. Entretanto, ficará somente na esfera hipotética, porque é um movimento que hoje não tem respaldo legal. A legislação não ampara e, portanto, enxerga de forma ilegal, pois o movimento afronta a nossa Lei Constitucional Maior, não existindo possibilidade, a não ser através da edição de uma nova Constituição”.

Para Celso, os próximos passos do Movimento envolvem os âmbitos culturais, políticos, econômicos, entre outros. “Temos um planejamento que nos permite pensar e agir para influenciar estas áreas no sentido de trabalharmos todos juntos para a realização do nosso maior sonho, um Plebiscito Vinculativo, cujo resultado pode nos levar à independência, ou não. Afinal, este é o papel do Movimento, lutar para que nosso povo seja ouvido de forma pacífica e democrática”, finaliza.

“Um olhar diferente do Sul”

Não é incomum ver piadas do restante do Brasil para com os sulistas, alegando que estes se sentem superiores, ou parte da população europeia. Os argumentos são comuns: não há motivos para os sulistas se sentirem um povo à parte do brasileiro, pois, assim como todas as outras regiões do país, o Sul é resultado de um grande processo de miscigenação dos povos, não se diferenciando, dessa forma, do restante do Brasil.

Diversos sites também zombam do fato de haver sulistas que se identificam como alemães ou italianos, pois “se fossem para lá, os europeus iriam considerá-los tão mestiços quanto os nordestinos”.

O Portal Geledés traz, em um texto a respeito do culturalismo racista, a seguinte fala: “Nota-se que boa parte da elite sulista deixou-se levar de fato pelo mito da continuidade cultural: sendo descendentes de europeus então pensam que de fato são realmente europeus ou então uma espécie de embaixadores da Europa no Brasil. E como europeus, são portanto superiores ao resto do Brasil, trabalham mais, são mais organizados, mais empreendedores, mais cultos. Em particular, talvez a parte do ‘mais cultos’ seja a maior ilusão de todas. Na verdade, a ignorância sobre a grande cultura que há no resto do país oblitera intelectualmente essa elite que se vê maior do que realmente é”.

O Sul do Brasil ainda tem um longo caminho pela frente, cujos desafios iniciam na compreensão de que seus habitantes são, de fato, brasileiros. Até lá, Os Internacionais seguem seu caminho se sentindo grandes estrelas no tapete vermelho cultural.